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Chega de saudade: Foliões celebram retorno com alegria e perrengues

Jandiara mal tinha 1,60m de altura e tentava de alguma forma um espaço para respirar na lotada  Pipoca do Saulo. Em cada tentativa de buscar ar, alguém jogava tinta colorida nela. De repente, ela começa a chorar, não por desespero, mas por saudade. Quando Saulinho começou a cantar ‘Pequena Eva’, nossa pequena foliã lembrou do marido, que morreu por conta da covid-19, alguns meses depois do último carnaval, em 2020. Eles sempre brincavam juntos.  Mas a melancolia não é eterna. Só pude conhecer Jandiara depois dela apertar minha bunda com tanta força, que eu achava que estavam furtando minhas nádegas. O luto, pelo visto, havia acabado no primeiro acorde de folia. Chega de saudade.

“Minha senhora, o que foi isso? Devolva minha bunda, vá”, indaguei. Com todo respeito, ela pediu desculpas. “Não resisti, gostoso. Tô facinha hoje”, devolveu Jandiara, de sessenta e poucos anos, com um lenço para enxugar o suor e uma passadeira “Deus me livre não ser baiano”. Na verdade, nem sei se o nome dela era esse mesmo. Quando perguntei, só me respondeu cinco segundos depois. Quando me identifiquei como repórter, ela quase foge.

“Sem câmeras, meu nego. Marquei com um namoradinho no 270-E (aquelas plaquinhas de identificação) e outro no final de Ondina. Tem uma paquerinha da igreja que eu disse que ficaria em casa rezando. Vai te lascar, aceito Jesus, mas não abro mão do carnaval. Este carnaval eu estou decretando o fim do meu luto. Minha proposta ainda está de pé. Nunca peguei um repórter dos ‘Correios’”, propôs.

Jandiara talvez seja a personificação do que estamos sentindo após dois anos de um apocalipse que parecia não terminar nunca.

Foram dias intensos de festa, mas também podemos chamar de um grande divã da alegria. Não que estamos num final feliz pleno, a pandemia sequer terminou. Mas ver uma foliona sobreviver ao caos e decretar o fim de sua melancolia em pleno carnaval deve ter sido o sentimento da maioria das pessoas que colocaram seus tênis velhos e foram extravasar na festa. Melhor ainda começar com a pipoca do Saulo, onde sua música deste ano tem um aviso cravado na pele: “Deus me livre de não ser baiano, de não ter carnaval todo ano”.

“Sofri, meu filho. Perdi o amor de minha vida pela desgraça deste vírus. Achei que era o fim. Quem estiver aqui hoje, não está só matando a saudade do carnaval. Está celebrando a sobrevivência”, disse a aposentada. Entre risos e emoções, fui perdendo Jandiara de vista, com aquele mar de gente pulando de forma quase sincronizada o retorno do carnaval.  E nunca mais a vi.

Perrengues e alegrias

Francisco pensou em ir apenas na quinta-feira, no primeiro dia de carnaval, mas acabou indo em todos, tirando o arrastão desta quarta-feira de cinzas. Nem daria tempo. Ele mora em Jauá, praia do Litoral Norte. São cerca de 90 quilômetros, ida e volta, de busão, todos os dias. Ele sai às 17h de casa e chega no circuito às 21h. Contando todo seu trajeto nos seis dias, dava para fazer uma viagem até Juazeiro. Vale a pena? Para ele, com certeza.

“Rapaz, é uma aventura cruel até chegar ao paraíso. A volta é fogo, pois eu já estou loucão e preciso andar até o Calabar para pegar um ônibus até a Lapa, além de pegar esta viagem com sol na cara, pois só consigo pegar ônibus depois das 7h”, conta Francisco, que comemora um saldo positivo na festa.

“Peguei muitas gringas e ainda tirei foto com Léo Kret. Confesso que achava que nunca mais teríamos carnaval e que nunca mais pegaria uma gringa”, desabafa Francisco, que encontrou Léo Kret em Ondina. “Ela viu todo mundo vestido de Bahia e pediu para tirar uma foto conosco. Ela viu que a gente estava cheio de vodka com energético, ficou bebendo com a gente. Carnaval é isso, né?”, completa.

“Foi um carnaval organizado, bonito, o melhor, se não fosse um detalhe. Esse foi o pior ano do cara conseguir mijar no banheiro químico. Impossível enfrentar aquela zorra. A galera mijou na rua mesmo, mulher, homem, todo mundo indo pra trás dos carro. Impossível mijar nos banheiros químicos”, pondera Tiago. “É por isso que dizem que carnaval cheira a mijo”, completa.

Este retorno do carnaval provou uma coisa: quem faz a festa é o povo.  Nenhuma música cantada por Ivete foi mais fofa que ver Maria Alice, no seu Baby Trio, de apenas quatro anos, acompanhando o  trio sem corda da própria Veveta. Os pais elaboraram um berço adaptado, com rodinha, com sombra e água fresca para a filha. O pai, vestido de Gandhy, empurrava o carrinho e bebia cerveja, enquanto a mãe avaliava uma distância segura entre eles e a pipoca. “Jamais ficaríamos em casa. Ninguém quer ficar mais em casa depois deste ano de pandemia”, resumiu a mamãe Catarine Macedo.

Mais adiante, em Ondina, dona Sebastiana exibia uma flor rosa na cabeça e um leque cigano. Aos 94 anos, sem dúvida estava entre os foliões mais experientes dos circuitos. Sentadinha na cadeira de roda, basta passar um trio e ela ensaiava uma dança. “Venho quase todos os dias. Hoje só vou embora depois de Dodô e Osmar”, resume.

É tão interessante ver a galera brincando carnaval, que tem gente que vai somente para ver pessoas. “Nego, eu venho para a Praça Castro Alves ver pessoas. Gosto de observar cada folião que compõe a festa. Imagine isso aqui só com o trio. É só barulho. Por isso não tivemos carnaval nos últimos anos. Sem gente, não funciona. Carnaval é reencontro, vi pessoas que há três anos não via. Saber que eles sobreviveram à covid me fez chorar. Acho que foi o carnaval da emoção”, disse Fernando, enquanto tomava uma cerveja, sozinho, na Praça Castro Alves. A mulher não gosta de carnaval. “Azar o dela”, completa.

Após dois anos sem esta alegria, caos e perrengues, o que pudemos observar era que Salvador vivia um cenário musical de felicidade eterna, como se estivéssemos na música de Chico Buarque, A Banda. “A moça triste, que vivia calada, sorriu. A minha gente sofrida, despediu-se da dor, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor…”. Mas para nosso desencanto, como a própria canção diz, o que era doce acabou. Tudo vai tomar seu lugar, né? Tirando o glitter, porque aquela porra não sai nunca. Que desta vez a saudade só dure até fevereiro de 2024.

 

 

 

 

 

Correio/BA, 22/02/2023

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