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Conselho do Ministério Público turbina viagens ao exterior e tem gasto milionário com diárias

Criado para fiscalizar e julgar infrações de promotores e procuradores, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) aumentou, no último ano, gastos com viagens ao exterior de conselheiros, auxiliares, assessores e até mesmo convidados do Judiciário. Segundo normas do colegiado, as despesas devem ser destinadas a deslocamentos “a serviço”, mas a verba tem sido usada para custear a participação em cursos e seminários fora do País. O órgão tem classificado as viagens como “missão internacional”.

Levantamento feito pelo jornal Estado de São Paulo mostra que, entre janeiro de 2022 e fevereiro deste ano, o CNMP gastou R$ 1,3 milhão em diárias e passagens aéreas para Estados Unidos, Portugal, Itália e Espanha. Desse total, R$ 1 milhão custeou estadias para a participação em cursos e seminários – o restante pagou missões variadas, como assinatura de acordos.

Os eventos para formação não exigem redação de uma tese de conclusão nem submissão prévia de artigos, como usualmente é cobrado em atividades de teor acadêmico promovidas por tribunais e escolas ligadas ao Poder Judiciário.

Desde 2019, o CNMP firmou uma parceria com a Accademia Juris Roma, com o objetivo de promover cursos e pós-graduações. Trata-se de uma microempresa registrada em nome e na residência do advogado italiano Frederico Penna, na capital italiana. Ele tem uma sócia brasileira. A entidade é apoiada por entidades de classe ligadas à magistratura e ao MP brasileiros.

Em setembro do ano passado, foram gastos R$ 587 mil em diárias e passagens a Roma para conselheiros cursarem o seminário “Proteção de Vítimas Criminais”, com nomes do direito do país europeu. Pelo menos um conselheiro, Rinaldo Reis, emendou mais uma semana em Roma, a título de férias. Com ele, foram gastos R$ 20 mil em diárias e outros R$ 27 mil em passagens. Segundo o CNMP, ele arcou com a diferença entre o período de curso e o de folga.

Nas portarias de liberação para o evento, consta o afastamento para “missão oficial” dos conselheiros. Membros auxiliares, que são promotores, procuradores e agentes de outras áreas convocados para o CNMP, que fica em Brasília, viajaram sob o pretexto de “acompanhar” conselheiros ou mesmo cursar o seminário.

A Accademia tem relação com juízes brasileiros. Conselheiro do MP que esteve em Roma, Daniel Carnio organiza cursos por meio da entidade. Um dia após o curso na capital, debateu a crise da democracia brasileira na Universidade de Siena, também na Itália.

Entre julho do ano passado e março deste ano, Carnio viajou mais de uma dezena de vezes ao exterior, em eventos do CNMP e fora dele. O conselheiro chegou ao órgão por indicação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Antes, era juiz auxiliar do ex-presidente da Corte Humberto Martins.

Pelo mundo
Em janeiro de 2023, foram pagos R$ 263 mil em diárias para a participação em um seminário em Lisboa. O evento levou a Portugal um painel no qual se discutiu um estudo sobre o perfil étnico-racial do MP brasileiro. O projeto é da Comissão de Direitos Fundamentais, presidida pelo conselheiro Otávio Luiz Rodrigues Jr., que foi indicado ao CNMP pela Câmara dos Deputados e é candidato a uma vaga destinada à advocacia no STJ.

O CNMP pagou R$ 36,8 mil também em diárias e passagens ao ministro do STJ Mauro Campbell, que esteve em Lisboa. Outros ministros não quiseram comparecer.

A ida de conselheiros e auxiliares a cursos no exterior representa uma mudança na dinâmica do CNMP. Nos anos anteriores, que registraram gastos menores com essas viagens, o órgão participou de seminários internacionais organizados no Brasil, que, por vezes, pagaram passagens de palestrantes estrangeiros.

Cientista político da Fundação Getulio Vargas (FGV) e estudioso do sistema de Justiça brasileiro, Rafael Viegas diz que o CNMP “tem avançado sobre atribuições do Legislativo e do Executivo” por meio de portarias e resoluções – exemplo são os gastos com viagens, que, segundo ele, deveriam trazer retorno para as atividades-fim do órgão, que são controle e fiscalização.

“Há a ampliação dos objetivos oficiais do CNMP em atividades de formação e capacitação, algumas com a rubrica de missão internacional para a qual não foi projetado, com o financiamento de viagens e hospedagens no exterior”, diz.

De acordo com Viegas, a justificativa das despesas com cursos precisa estar “demonstrada não apenas em certificados, mas também com a produção de conhecimento, publicações de artigos e entrevistas”.

Acordos

Além de idas para cursos, o CNMP tem levado conselheiros ao exterior para a costura de acordos. Em um desses eventos, também houve convite à presidente do STJ, Maria Thereza de Assis Moura, que declinou. Tratava-se de uma viagem a Washington para a assinatura de um acordo com o objetivo de promover a capacitação de juízes e membros dos MPs. O CNMP custeou a ida de um auxiliar para acompanhar o procurador-geral da República e presidente do órgão, Augusto Aras, por R$ 40 mil.

Em outra viagem, à Costa Rica, para uma visita à sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em janeiro deste ano, oito conselheiros e uma assessora especial compareceram para a assinatura de um acordo semelhante. Foram pagos R$ 177 mil em diárias e passagens. Já o promotor de Justiça de Goiás Carlos Vinicius Alves Ribeiro recebeu R$ 15 mil em diárias para participar da comemoração dos 300 anos do Ministério Público da Rússia, em Moscou.

Atribuições

De acordo com o cientista político Fábio Kerche, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio), o CNMP “foi pensado e criado para ser uma espécie de controle externo do MP, mas, na verdade, ele não é nem controle na sua plenitude nem é externo”. Ele critica a formação majoritária no conselho por integrantes do próprio MP.

“Quando você olha os indicadores da atuação do conselho, os números são muito tímidos. Conseguir a punição de um promotor é uma corrida de barreiras. As punições mais pesadas são poucas e geralmente são ligadas às atividades que não são do MP. Por exemplo, um promotor que matou alguém”, afirma.

Kerche também considera que, quando ocorrem, as punições a promotores são pouco efetivas. “Quando tem, são medidas muito brandas. É muito difícil um cidadão que se sente injustiçado pela atividade de um promotor conseguir uma resposta do conselho”.

Parcerias

À reportagem, Frederico Penna afirmou que “os eventos da Accademia Juris, sendo uma entidade de formação, são organizados em vários lugares da Europa e da América Latina”. “A Accademia é a organizadora de seus próprios eventos, definindo os programas e os locais dos mesmos. Em alguns casos também fazemos parcerias com universidades e instituições”, diz Penna. Segundo ele, os coordenadores “são também de diversos países, o que ressalta a visão internacional da Accademia e sua unicidade para propor cursos para um mundo hiperconectado e globalizado”.

Por meio da assessoria de imprensa, o CNMP afirma que “Carnio, como presidente da Unidade Nacional de Capacitação do Ministério Público (UNCMP), tem, por missão institucional, criar oportunidades de aprimoramento, por meio de atividades e cursos no Brasil e no exterior aos membros e servidores do Ministério Público”.

Sobre as viagens de Otavio Luiz Rodrigues, Rinaldo Reis e Carlos Vinicius, o CNMP não respondeu à reportagem até a publicação desta reportagem.

 

 

 

 

 

 

Politica Livre, 16/04/2023

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