São mais de mais de três anos e cinco meses de sofrimento para os parentes do servidor público de Lauro de Freitas, Alessandro Bráulio Matos Fraga, 33 anos, assassinado em abril de 2019, na cidade de Simões Filho. Para além da dor, outro sentimento consome a família, o descaso. “A gente só quer saber quem fez isso e o porquê, mas toda vez que vou à delegacia nunca tenho resposta”, declarou a tia da vítima, Ana Creuza Matos Fraga, 60. A aflição dela retrata um número preocupante na Bahia.
O levantamento foi feito pelo Ministério Público da Bahia, a pedido da reportagem, mostra que de 2017 até o dia 20 de setembro deste ano, dos 10.583 inquéritos de homicídios dolosos (com intenção de matar) que não foram denunciados pelo Ministério Público do estado, 8.169 (77%) não foram adiante por falta de provas durante a investigação, feita pela Polícia Civil da Bahia que, segundo o MP-BA e entidades sindicais da PCBA, tem infraestrutura e pessoal insuficientes.
Ou seja, com os inquéritos sem provas suficientes, 77% dos prováveis autores acabaram não sendo indiciados (presos) ou responsabilizados pelo sistema de justiça, composto pela Polícia Civil, Ministério Público e o Tribunal de Justiça. “Isso é um tormento. A mãe de Alessandro morreu no ano passado de tanto desgosto, enfartou. Ela foi muitas vezes à 23ª (delegacia de Simões Filho), o mesmo delegado alegava outros casos para investigar. Aquilo tirou o sono dela. Ela passou mal várias vezes e acabou não resistindo a tudo isso”, relatou Ana Creuza.
Até hoje, Ana Creusa não tem respostas da Polícia Civil sobre o assassinato do sobrinho em abril de 2019 (Foto: Marina Silva/CORREIO)
Alessandro foi ex-presidente e fundador do Grupo Gay de Lauro de Feitas. Momentos antes de ter sido assassinado, ele falava ao celular e também foi visto na companhia de dois homens no centro da cidade. O corpo foi encontrado num matagal na localidade de Pedreira, entre Simões Filho e Areia Branca, em Lauro. O carro dele, um Volkswagen Fox, estava a 100 metros de Alessandro, que apresentava marcas de tiro, estrangulamento e de pauladas na cabeça.
O MP-BA considerada como esclarecido um homicídio doloso quando pelo menos um agressor é denunciado. Ou seja, quando há a denúncia porque houve conclusão do inquérito policial com indícios suficientes de autoria e materialidade para individualização da conduta criminosa. O que não aconteceu com a investigação da morte de Alessandro.
“A gente sabe que nada disso vai trazer ele de volta, mas a família quer respeito, quer que a justiça seja feita”, desabafou Ana Creuza que ainda tem esperança que os responsáveis pela morte brutal do sobrinho sejam presos, denunciados e posteriormente submetidos a júri popular. “Não vamos desistir”, disse ela.
De acordo com o MP-BA, com base no sistema interno de dados da instituição, desde 1 de janeiro 2017 até essa última terça-feira (20 de setembro), dos 19.178 inquéritos enviados pela Polícia Civil, apenas 8.595 os autores foram denunciados pelo crime – isso corresponde a 55% dos casos.
“Perdi a conta das minhas idas à delegacia atrás de resposta para o que fizeram com Alessandro. No ano passado, perguntei porque não tinham pedido a quebra do sigilo telefônico do meu sobrinho e o delegado respondeu que não tinha pedido porque estava sozinho para dar conta de uma pilha de inquéritos”, contou a tia de Alessandro.
Ana Creuza vive das lembranças do sobrinho e tem esperança que os criminosos serão punidos (Foto: Marina Silva/CORREIO)
Ainda segundo o MP-BA, do total dos inquéritos que não foram denunciados, 42% foram arquivados por falta de provas durante os cinco anos.
“Um ponto em relação a isso é a ferida, que é o direito à memória e a justiça dessas vítimas. Essas famílias têm o direito à resposta. A sociedade espera esses esclarecimentos, as famílias, principalmente, querem esse retorno”, disse a cientista social Luciene Santana, pesquisadora da Rede de Observatórios de Segurança na Bahia.
Nacional
Se a gente comparar a Bahia com o cenário nacional, a situação é ainda mais preocupante. O estado ocupada o terceiro pior índice de esclarecimento de homicídios do país, 24%. A informação consta na quinta edição da pesquisa Onde Mora a Impunidade, do Instituto Sou da Paz, que mostra o percentual de homicídios praticados em 2019, que geraram denúncias à Justiça até o final de 2020. O levantamento foi divulgado em agosto deste ano pela instituição, que tem o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) concedido pelo Ministério da Justiça.
O Sou da Paz definiu como um homicídio doloso “esclarecido” quando há pelo menos um agressor denunciado pelo Ministério Público. De acordo com o levantamento, a Bahia, junto com o Pará e o Piauí, tem a terceira pior taxa de esclarecimento de assassinatos, 24%. O percentual é abaixo da média nacional, calculada em 37% – o Rio de Janeiro é o estado com a menor taxa, 16%, e o Amapá vem em seguida com 19%. Em números absolutos, a pesquisa considerou os dados do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que a pontou que a Bahia em 2019 registrou 4.660 pessoas que foram mortas – desse universo, 932 inquéritos viram denúncias no mesmo ano e 175 em 2020.
A porta-voz do Sou da Paz, a pesquisadora Beatriz Graeff disse que a melhoria na capacidade de esclarecimento está diretamente relacionada ao investimento que os estados fazem na melhoria dos procedimentos de investigação com a definição de protocolos claros de atuação. “É fundamental que exista uma boa articulação entre os órgãos do sistema de justiça desde a Polícia Militar que normalmente é a primeira que chega no local preservando as provas, passando pela Polícia Civil, que é a responsável pela investigação e pelo inquérito até o Ministério Público, que tem que trabalhar articulado com a Polícia Civil para que os inquéritos sejam concluídos de maneira satisfatória, com elementos suficientes, para que o Tribunal de Justiça possa fazer o julgamento”, declarou Graeff, que pontou também a necessidade fundamental de investimento em perícia criminal – na sede do Departamento de Polícia Técnica (DPT) da Bahia, na Avenida Garibaldi, um microscópio de R$ 5 milhões está há sete anos sem uso e outros equipamentos tecnológicos no valor de R$ 4,5 milhões estão encaixotados há um ano.
Delegacias sem estrutura
Um ambiente totalmente degradado, com cadeiras e mesas quebradas, paredes, tetos se deteriorando até o piso não existe mais. É nesse local que trabalhavam os agentes que precisam investigar os crimes na cidade de São Félix e cidades vizinhas que também integram a região do recôncavo.
Agentes trabalham em ambiente degradado na delegacia de São Félix, que também atende outras cidades da regão (Foto: Divulgação)
“O cartório, alojamento realmente não tem condição para os servidores trabalharem e prestarem um atendimento para a população, ambiente insalubre e vários outros problemas. Aqui de fato necessita de uma reforma urgente”, declarou o presidente do Sindpoc Eustácio Lopes, após uma vistoria à unidade no início deste mês.
De acordo com ele, o prédio está todo com a estrutura comprometida. “Essa delegacia está em ruínas, com uma real ameaça de desabamento. Saio daqui muito preocupado com os nossos colegas que são obrigados a trabalhar nesse ambiente, que não oferece nenhuma dignidade tanto aos servidores, como para a população que vem aqui buscar o serviço”, apontou.
O prédio é tão antigo que tem na faixada ainda a palavra “detenção”. O diretor jurídico Roberto Cerqueira apontou outras irregularidades. “O cartório, alojamento realmente não tem condição para os servidores trabalharem e prestarem um atendimento para a população, ambiente insalubre e vários outros problemas. Aqui de fato necessita de uma reforma urgente”, finalizou.
Delegacia de são Félix corre risco de desabamento, diz sindicato dos policiais civis (Foto: Divulgação)
Respostas
Questionado sobre os próprios dados, o MP-BA explicou que os crimes de homicídio demandam, no mais das vezes, investigações complexas, que necessitam de um corpo policial especializado e do apoio de um departamento de perícia técnica estruturado. “Tal cenário demanda um constante aperfeiçoamento das forças policiais com investimento, notadamente na atividade de inteligência, e permanente capacitação”, disse o MP-BA.
A instituição informou que, ao longo dos últimos anos, vem adotando diversas medidas para melhorar a atuação de controle e monitoramento dos prazos e da qualidade dos inquéritos policiais a cargo da Polícia Civil, entre elas: o aumento de oito para 12 no número de promotores com atribuição exclusiva para os crimes de homicídios em Salvador, aumento de dois para seis no número de promotores da capital com atribuição exclusiva para o controle externo da atividade policial e a tutela difusa da segurança pública, aliada à criação do Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública (Geosp), uma unidade especializada, composta por três promotores, voltada para atuar nos casos mais complexos e de maior relevância nas áreas citadas, em apoio aos promotores da capital e do interior e a disponibilização de tabelas automatizadas aos promotores de Justiça, extraídas do próprio sistema interno do MP (Idea), contendo a relação de todos os inquéritos policiais devolvidos às unidades policiais para diligências complementares.
A reportagem procurou também a Polícia Civil, que enviou a seguite resposta : “Sobre as devoluções dos inquéritos por parte do Ministério Público, sugiro contato com o órgão. A Polícia Civil conclui e encaminha os procedimentos para o MP após esgotar todas as diligências investigativas e recomendadas pelo Ministério Público”. Já sobre a demora na investigação sobre a morte de alessandro, a PC disse: ” O inquérito instaurado na 22ª Delegacia Territorial (DT) de Simões Filho para apurar o homicídio de Alessandro Bráulio Matos Fraga está em andamento. Algumas pessoas já foram ouvidas e diligências complementares estão sendo realizadas para identificar outras testemunhas”. A reportagem aguarda o posiciomanto quando a situação da delegacia de São Félix.
Fonte: Correio/BA, 26/09/2022