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‘Não vamos escolher entre ser cigana ou feminista’, diz pesquisadora

Sara Macêdo Kali, 26 anos, não quer decidir entre ser mulher cigana ou feminista: é ambas. “Não queremos, nem vamos escolher”, diz ela, uma das criadoras de um grupo de jovens empenhados em promover o debate sobre gênero raça, etnia e sexualidade entre ciganos – o Coletivo Ciganagens.

Quando a notícia da morte de Hyara Flor se tornou pública, Sara sabia que a população cigana ficaria em evidência. É o que acontece quando uma tragédia é registrada entre a população cigana. Depois, os holofotes apagam.

Hyara tinha 14 anos e foi encontrada morta, no chão do quarto, no dia 6 de julho. A suspeita do assassinato recai sobre o marido da vítima, outro adolescente com quem ela havia se casado em junho. Ele fugiu de Guaratinga, no sul da Bahia.

por

Sandra Macêdo Kali

“É uma falsa preocupação, só chega aqui a mídia para filmar e a polícia. Se só chegam dois direitos para a gente cigano, de mídia e polícia, significa que muita coisa vai acontecer. De fato, ninguém para ajudar”

Ela dá exemplos disso. O Brasil desconhece o contingente populacional de pessoas ciganas no país. O Ministério Público Federal (MPF) tem recomendado que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revele quantas e quem elas são.

De acordo com a última pesquisa feita pelo instituto sobre ciganos, em 2011 existiam acampamentos em 21 estados, com maior concentração em Minas Gerais (58), Bahia (53) e Goiás (38). Ao todo, eram 500 mil ciganos de três etnias vivendo no Brasil.

Natural de uma comunidade cigana de Goiás, Sara deixou sua casa para estudar Direito. Neste ano, concluiu o mestrado em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás. Na última semana, finalizou a primeira cartilha do país sobre direitos reprodutivos e sexuais de ciganas. Ela reconhece a solidão da sua trajetória.

O documento inédito foi produzido com supervisão da Fiocruz, que promoveu um curso sobre juventudes ciganas. Na entrevista a seguir, Sara propõe um olhar que não reduza pessoas ciganas a “essências culturais”, mas enxergue a marginalidade imposta a esse grupo étnico e preconceitos de gênero que não atingem só elas.

Sara faz de suas respostas uma provocação. “Não só nós estamos sofrendo com patriarcados. […] Como vivemos em comunidade, fica mais evidente. “Acho que falta uma discussão que não tire nossa dignidade. É um problema o casamento infantil. Mas, não acho que foi isso que levou à morte de Hyara”.”.

 Leia a seguir a íntegra da entrevista e entenda o que ancora as violências contra as ciganas.

CORREIO: Como foi se descobrir como mulher cigana feminista?

Sara Macêdo Kali: Foi um processo fácil. Acho que venho de uma família em que as lideranças são mulheres e já me organizava da forma que o feminismo prega na teoria, na prática. O feminismo é só uma palavra para organizar certos tipos de rebelião das mulheres, eu só fui conhecer na faculdade. Esse comportamento, dentro da comunidade cigana, é um babado em si [risos].

Somos uma etnia que não tem visibilidade nenhuma no Brasil. Praticamente não ouvimos falar sobre a etnia cigana, então, imagine, as pautas como feminismo, lgtbqiapn+, vão ser menos discutidas ainda. Essas pautas são todas muito nascentes.

Você falou que o feminismo é uma pauta ‘babado’ na comunidade cigana. Então todos aceitaram seu feminismo?

Minha cidade é muito pequena, vivemos em comunidade. Então, meu feminismo, na verdade, foi uma pauta para minha cidade em si [risos].

Meus avós não entendiam no começo, mas sempre tivemos afeto, acho que isso mudou tudo. A gente brigava, mas eu dizia: ‘existe o certo e o errado, esse é o certo’. Meu avô dizia: ‘se isso é o correto, tudo bem’. Ninguém nasce sabendo o que é feminismo.

Mas, principalmente para a família do lado do meu pai, foi bem difícil. É difícil porque muitas dessas questões, para nós, são tratadas como se fossem de cunho pessoal. É como se certos assuntos não devessem se tornar uma pauta política.

Por isso que é ainda mais difícil, não só a pauta em si, ou entender o que é o correto, mas eles acham que é expor demais. Essa é a parte mais difícil.

Crianças, vocês já começam a entender como as coisas funcionam? 

Quando a gente é pequeno, a gente já tem consciência étnica. Fui crescendo e não via a necessidade de definir o debate do meu povo, das nossas lutas, como questão cultural, mas questão política.

Quando vem nos perguntar sobre questões tabu, como essa que vamos falar hoje, é como se essas questões fossem consequência natural da cultura, não da política. Não só nós estamos sofrendo com patriarcados. A gente sabe o que é uma vida boa e uma vida ruim.

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