
Na semana passada, muita gente soube que o prefeito de Salvador, Bruno Reis, não vacinou os filhos – crianças em idade de vacinação – porque a ex-esposa, que é médica, é contrária à vacinação. E aí, ficam algumas perguntas: como voltar às aulas presenciais quando temos famílias que não querem proteger os filhos? Como isso põe em risco não só as outras crianças, mas os professores, ajudantes, a escola inteira?
António Nóvoa, reitor honorário da Universidade de Lisboa, professor do Instituto de Educação e Embaixador de Portugal na Unesco de 2018 a 2021, explica: “Os pais não são proprietários das crianças, elas têm direitos, e direitos importantes, que a Declaração Universal consagra. Há direitos das crianças que vão para além do direito dos pais”. Na última semana, o professor António fez a palestra de encerramento da Jornada Pedagógica de 2022, realizada pelo Instituto Anísio Teixeira. Lá, ele lançou o livro Escolas e Professores – Proteger, Transformar, Valorizar.
Nesta entrevista, falamos sobre o ato de educar durante a pandemia, a volta às aulas presenciais, o prejuízo causado pela chegada abrupta da Covid-19 no mundo e o aprofundamento das desigualdades trazido por ela. Mas, também, falamos de cooperação e esperança: “Se alguma coisa nós aprendemos com a pandemia é que, apesar de tudo, quem melhor respondeu a ela foram alguns professores e algumas escolas. Nós temos que aprender com esses professores, essa aprendizagem é que é verdadeiramente formadora”.
Com a pandemia, o mundo parou com as aulas presenciais e foi para o virtual. Com essa mudança, muitos estudantes de regiões mais pobres ou zonas rurais passaram a ter um acesso extremamente restrito à educação, por não ter equipamentos ou internet de qualidade. Até alunos de classe média relataram dificuldade de aprendizado nesse período. Ainda dá para recuperar essas perdas?
Eu, durante esses dois anos, estive na Unesco, em Paris, na Organização das Nações Unidas para Ciência e Cultura. Nós acompanhamos muito a situação no mundo inteiro. E essa situação foi dramática, sobretudo para as zonas mais pobres, com mais dificuldade de acessar à internet. Isso criou uma descontinuidade nas aprendizagens que vai ser dramática. Nós temos aí riscos de perder uma geração em muitos lugares no mundo. Há milhões e milhões de crianças e jovens que já não vão voltar à escola, sobretudo aquele jovem de 13, 14 anos, são jovens que estão perdidos. Em particular, as meninas. Mas, face a isso, o que podemos fazer? Podemos tentar duas coisas: primeira, regressar o mais rapidamente possível à escola presencial. A escola presencial, com todas as suas dificuldades, ainda é infinitamente melhor do que a escola virtual. Em todo o mundo, há uma política, hoje consensual, para o regresso das escolas o mais rapidamente possível. E isso tem que ser feito com muita prudência, com muita precaução, com muitos cuidados, mas tem que ser feito. E tem que ser feito em nome justamente do combate às desigualdades. A segunda coisa que temos todos que fazer é que, hoje, na sociedade do século 21, o acesso à internet é um direito. Deveríamos rever a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 para nela introduzir o direito ao acesso à internet. Porque, hoje em dia, é essencial. É essencial para a saúde, para a educação, para os exercícios de cidadania e para a participação política. Mas, isso vai demorar mais tempo. No imediato, é escola presencial, reconhecendo todas as dificuldades, mas tentando sempre fazê-lo com essa alegria que os baianos sabem tão bem praticar, com essa alegria sem a qual não há educação, não há curiosidade e não há relação humana.
Por que para as meninas a pandemia foi pior?
Porque as meninas, em muitos lugares do mundo, sofrem um grande preconceito. A partir daquela idade dos 12, 13 anos, quando as meninas entram na puberdade, quando começa a ser visível o início das suas sexualidades, há muitas comunidades, muitas culturas no mundo, que não gostam de ter as meninas em espaços públicos, como a escola, e preferem que fiquem fechadas em casa. E, quando esse preconceito ganha reforço nesta pandemia, o regresso à escola é ainda mais difícil para as meninas do que para os meninos.
Como a pandemia pegou as escolas de surpresa, muitos professores não souberam o que fazer nesse momento de mudança, não tinham prática com aulas virtuais ou experiência com a tecnologia. Na sua análise, as escolas acolheram bem os professores naquele momento?
A minha resposta é não. Ninguém estava preparado. O mundo não estava preparado. E, portanto, as escolas e os professores também não estavam. As respostas que deram foram frágeis. Não sei se vocês têm esse provérbio, mas, não vale a pena chorar pelo leite derramado. E, quando olhamos para o que podemos fazer, verificamos que, apesar das respostas terem sido frágeis, onde houve melhores respostas foi da parte de alguns professores e de algumas escolas. O que quero dizer com isso: os ministérios e os ministros, e os governos, deram respostas muito fracas. E foi, muitas vezes na iniciativa, na inventividade, e na tentativa de encontrar soluções de muitos professores, a título individual, que vieram as melhores respostas. A monitorização que nós fizemos na Unesco em todo o mundo deixa isso muito claro. Ora bem, se não queremos chorar sobre o leite derramado e queremos reconstruir o futuro, é nestas experiências que nós podemos encontrar as melhores respostas para a educação agora, e é nestes professores que poderemos encontrar o caminho que temos que fazer agora e no futuro.
Quando falamos de professores da zona rural e da rede pública, por exemplo, esse abismo fica ainda maior. Assim como os alunos, muitos professores, que não são bem pagos, não têm um bom acesso à internet ou um local silencioso para dar aula. Como evitar que isso torne a educação ainda mais elitista?
Estou em uma fase da minha vida em que acredito pouco nas respostas mais centralizadas, dos governos, de cima para baixo. Acredito mais nas respostas de baixo para cima, que vêm dos professores, das suas iniciativas. Então, o que nós temos que fazer é, de uma vez por todas, dizer e reconhecer que nada substitui um bom professor, que os professores são o coração, são a alma, são o que pode, verdadeiramente, transformar a educação. Que neles reside essa capacidade de poder ter uma escola pública de qualidade, que combata as desigualdades. É neles que está a resposta para muitos desses problemas. Mas, dizer isso é fácil. O que é difícil é dizer: então, se é assim, temos de dar a estes professores as condições para que eles possam fazer o seu trabalho. Temos que lhes dar as condições salariais, as condições de formação e dar condições às escolas. A melhor política não é inventar uma forma, um currículo, uma diretriz: é dar condições aos melhores professores para poderem realizar o seu trabalho. E, hoje, isso significa dar condições para que eles possam colaborar. A colaboração entre professores é essencial.
Muitos países já aprovaram a vacinação em crianças e jovens de 5 a 18 anos, mas ainda vemos um movimento anti-vacina forte em alguns lugares. Se as crianças não se vacinam, além de colocar outras crianças em risco, os professores acabam ficando ainda mais expostos. Como as escolas devem agir para acolher e proteger esses professores e o ambiente escolar?
Infelizmente, temos assistido no mundo a movimentos anti-vacinas, anti-ciência, anti-conhecimento, fake news, negacionismo. Tem sido um tempo difícil para a humanidade. Temos que fazer um trabalho de conscientização: das pessoas, das comunidades, de apelo a uma razão científica, de apelo a uma confiança na ciência, e tentar destruir todos esses negacionismos que são fatais. Somos todos interdependentes um dos outros, não é? Ninguém vive sozinho. A saúde não é um bem individual, é um bem comum de todos nós. A educação também não é um bem individual. A educação se faz no encontro com os outros.
Muitas famílias falam: “Se a vacinação contra a covid for obrigatória, vou tirar o meu filho da escola”. Como evitar que a criança seja prejudicada pelo negacionismo? O que a escola pode fazer?
A questão que se coloca é uma questão histórica. A família é muito importante e os direitos da família são muito importantes, e já estão consagrados da Declaração Universal de Direitos Humanos. Mas, há direitos da criança que vão para além dos direitos da família. Os pais não são proprietários das crianças, os pais não são donos das crianças, elas têm direitos, e direitos importantes, que a Declaração Universal consagra. Há direitos das crianças que vão para além do direito dos pais, e toda a gente compreende isso: se há uma grande violência, ou assédio, a criança tem que ser protegida. Na área da saúde, é a mesma coisa. Os pais têm direitos sobre as crianças? Têm. Não estou tentando negá-los. Estou a dizer que crianças também têm direitos, e são direitos que têm que ser assegurados por todos nós. E foi em grande parte por isso que, há 35 anos, se escreveu uma Declaração Universal dos Direitos da Criança. Elas têm direitos próprios, são seres humanos, e compete-nos a todos nós, não apenas ao Estado, sermos capazes de assegurá-los.
O senhor acha que a pandemia deve afetar na formação de novos professores? Como?
Afetou muito porque cortou muitas dinâmicas de formação. Mas ensinou uma coisa que já vínhamos dizendo há muito tempo: a melhor formação é a co-formação. É a formação que se faz com os outros professores, com os pares. A melhor formação é a de conversar uns com os outros. E não é uma conversa à mesa do café, é no sentido de construir conhecimento. A ideia de formação cooperada é o mais importante. E, como eu dizia, se alguma coisa nós aprendemos com a pandemia é que, apesar de tudo, quem melhor respondeu a ela foram alguns professores e algumas escolas. Nós temos que aprender com esses professores, essa aprendizagem é verdadeiramente formadora. Essa é a grande lição que vem da pandemia.
Aqui no Brasil, principalmente depois das eleições de 2018, professores passaram a ser ainda mais ameaçados e atacados pelos pais dos estudantes, principalmente na rede privada. Muitos políticos começaram a incentivar os alunos a filmarem os professores durante as aulas caso fosse dito algo que pudesse ser interpretado como uma manifestação política. Como proteger os professores e manter um ambiente saudável em sala de aula nessa era tão digitalizada?
Eu tenho 45 anos que trabalho na área da educação, e trabalhei em dezenas de países no mundo inteiro. E vi muitas coisas boas, vi muitas coisas más, muitas coisas que gostei e muitas coisas que não gostei. Mas, de todas as coisas que eu vi em 45 anos, a pior de todas foi aqui no Brasil, quando vi responsáveis e políticos apelarem, através das redes sociais, à delação dos professores. Apelarem a meninos de 7, 8 anos: “Gravem. Se vossos professores estiverem a dizer alguma coisa inconveniente, gravem e enviem para nós, que nós vamos persegui-los”. Em 45 anos, nunca vi, em nenhum país do mundo, nada que fosse tão contrário ao ato educativo. Porque educação é um gesto de confiança, confiança entre um mestre e um discípulo. E a escola é um lugar sagrado que deve ser protegido desses fenômenos de ódio, de raiva, de delação. E é por isso que eu considero que essas iniciativas são absolutamente escandalosas. Não quer dizer que os professores nunca erram, porque erram, e, em alguns momentos, vão errar, mas a escola deve ter essa capacidade de compreender e ultrapassar o erro, de construir práticas melhores. Em 45 anos visitando escolas de todo o mundo, esse foi o gesto mais obsceno que vi alguém fazer na área da educação.
Fonte: Atarde, 13/2022



