Empregada que ficou sem folgar por 8 meses sofre de ansiedade e reaprende a ser livre

As mulheres da família de Carine*, assim como ela, poucas vezes puderam escolher. Aos sete anos, sua mãe virou babá. Na adolescência, ela via tias em longas jornadas como empregadas domésticas. Pouco tempo depois, seguiu o mesmo caminho. Herdeira de um passado sem fim, Carine redescobre, hoje, a liberdade que lhe foi tirada em nome de um emprego que a privou, por oito meses, de viver a própria vida.
Depois dos meses sem folga, numa casa de classe média alta onde era vista como ameaça de contaminação pelo coronavírus, Carine pediu demissão, no final de dezembro passado. No mesmo dia, chamou o marido e a filha para passear numa loja de estofados e comer batata frita com refrigerante, no Shopping Piedade, em Salvador. “Me senti um passarinho. Fazia tempo que não sentia aquela liberdade”.
Durante aquele período, a empregada viveu para as três patroas – uma adulta e duas idosas -, de domingo a domingo. A mais jovem delas dizia ter medo de que Carine as contaminassem. Propôs, então, que a funcionária dormisse no trabalho, que a pagava R$ 1,5 mil mensais. Àquela altura, em março do ano passado, o marido de Carine esperava uma pensão pendente. A família estava sem dinheiro.
A doméstica não pôde colocar os pés para fora do trabalho – exceto para compras de interesse das patroas – por quase dois meses ininterruptos. Depois desse tempo, houve semanas em que ela dormiu em casa, a 30 quilômetros de distância. Saía de lá às 19h30, conduzida por um motorista contratado pelas chefes, e retornava, no outro dia, às 7h. Nesse intervalo, uma das patroas mantinha o controle sobre ela. Proibia a funcionária, por exemplo, de visitar os pais.
Uma nova rotina para Carine e o medo de falar
Em casa, Carine gosta de passar tempo com a filha e assistir filmes – menos os de terror. Outras vezes, prefere o tédio. A liberdade é tão simples quanto complexa para quem conhece o oposto dela. Carine quer ser feliz, apesar de tudo. Ao mesmo tempo, quando fala dos meses no trabalho, fica ansiosa, o coração “treme”. Ser livre é, para ela, um reencontro cotidiano, um acerto de contas com as lembranças.
Sem dinheiro para pagar especialista que diagnosticasse o porquê dos sintomas que insistem em aparecer sem que se dê conta, nem disposição para buscar atendimento gratuito, Carine acredita que sofre transtorno de ansiedade
No último final de semana, depois de ler a denúncia de empregadas em confinamento publicada no CORREIO, ela deixou um comentário numa rede social do jornal. Precisou pausar três vezes a leitura, que a angustiava, antes de fazê-lo. Só então deixou o escuro do silêncio.
Pelo menos 10 mulheres disseram passar por confinamento ou conhecer quem passou, também pelas redes sociais do jornal. Uma delas, segundo relato de uma amiga, estava há um ano sem voltar para casa. Ela não quis dar entrevista. Outra ficou sem sair por quatro meses. Quando entramos em contato com a filha dessa empregada, ela desconversou.
Fonte: Correio/BA, 03/05/2021