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Guerra e sanções à Rússia aceleram desglobalização e põem dólar em xeque

A guerra na Ucrânia e as sanções à Rússia impostas como arma em escala inédita pelas democracias liberais do Ocidente devem acelerar tendência em curso de diminuição da integração comercial e financeira globais.

No percurso, a supremacia do dólar em transações internacionais e no acúmulo de reservas tende a perder espaço, como já ocorre há alguns anos.

Entre a crise financeira global de 2008 e o início da pandemia em 2019, o comércio mundial como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) global encolheu 4,6 pontos percentuais, segundo o Banco Mundial.

Nos três anos que antecederam a Covid-19, os fluxos de investimentos externos de longo prazo entre países haviam caído quase 25%, para US$ 1,5 trilhão, segundo a Unctad, órgão da ONU para comércio.

Para especialistas, as sanções contra a Rússia tendem a reforçar a retração na integração global, estimulando países potencialmente sujeitos a esse tipo de medida imposta por Estados Unidos e União Europeia a se afastarem das democracias liberais e a se unirem mais.

Nos últimos anos, nações consideradas autocráticas como Rússia, China, Turquia e Hungria (as duas últimas com governos eleitos) vêm apertando laços comerciais com países análogos. No conjunto, a participação desse “bloco autocrático” no PIB global e como destino de investimentos estrangeiros aumentou significativamente.

A Economist Intelligence Unit estima que os países autocráticos concentram hoje cerca de 30% do PIB global, o dobro de antes do fim da União Soviética, em 1991. Suas exportações cresceram significativamente no período e o valor das empresas listadas em mercados acionários saltou de 3% do total global para cerca de 30%.

Ao mesmo tempo, há experiências cada vez mais frequentes de, nas relações comerciais, os países usarem suas próprias moedas, algo que Rússia e China pretendem intensificar após as sanções contra Moscou.

A maior parte dessas economias também vem buscando alternativas ao dólar para o acúmulo de reservas. Desde a invasão da Crimeia, em 2014, a Rússia intensificou o movimento e multiplicou suas posições em ouro e outros ativos.

Ao final de 2021, a participação do dólar americano nas reservas dos bancos centrais globais atingiu o menor patamar em mais de duas décadas: 58%, ante 71% na virada dos anos 2000, segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional).

A diretora-adjunta do Fundo, Gita Gopinath, afirmou recentemente que, embora o dólar ainda domine a paisagem financeira global, ele tem sido substituído em muitas economias.

“Já estamos vendo isso com alguns países renegociando a moeda em que são pagos pelo comércio”, disse Gopinath. “Eles também tendem a acumular reservas nas moedas com as quais negociam com o resto do mundo. Vemos tendência em direção a outras moedas desempenhando um papel maior.”

O Fundo estima que até um quarto da diminuição do dólar como principal moeda para reservas pode ser explicado pelo maior uso do yuan chinês. Mesmo assim, embora sua participação tenha triplicado em cinco anos, menos de 3% das reservas globais são denominadas na moeda chinesa.

No fim de março, a autocrática Arábia Saudita anunciou intenção de vender petróleo para a China (e acumular reservas) em yuans —25% das importações chinesas de óleo vêm do país árabe.

Em carta a acionistas a respeito da guerra e das sanções à Rússia, Larry Fink, executivo-chefe do BlackRock, maior fundo de investimentos do mundo, argumentou que “a invasão russa da Ucrânia pôs fim à globalização que experimentamos nas últimas três décadas”. Uma consequência poderia ser o uso maior de moedas digitais —área em que as autoridades chinesas têm feito avanços.

Como parte do esforço para reduzir a dependência dos sistemas de pagamentos financeiros controlados pelos EUA, a China também lançou, em 2015, o Cips (Cross-Border Interbank Payment System). No ano passado, o sistema movimentou US$ 7,1 trilhões, agregando 1.200 participantes em mais de cem países.

Embora seu volume de transações venha aumentando cerca de 20% ao ano, o Cips é diminuto se comparado ao Swift (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunications), com 11.000 membros em todo o mundo —e do qual bancos russos foram expulsos desde a invasão.

Para o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, a guerra comercial entre EUA e China no governo Donald Trump (2017-2021), a pandemia e as sanções do Ocidente contra a Rússia são marcos que podem acelerar mudanças estruturais nas relações comerciais e financeiras entre países.

“Os acontecimentos recentes reforçam a ideia de que o fim da história não passava de um sonho”, diz Fraga em referência ao best-seller “O Fim da História e o Último Homem” (1992), de Francis Fukuyama, no qual o autor apregoava a vitória definitiva no mundo do modelo democrático liberal capitalista.

“O mundo está repensando, por exemplo, todo o modelo de administração de estoques que vinha ocorrendo dentro de uma cadeia produtiva internacional integrada e que apresentou problemas nos últimos anos”, afirma.

Muitos países já vêm tomando medidas efetivas no sentido de reduzir a integração produtiva. O volume anual de investimentos estrangeiros diretos entre EUA e China, por exemplo, caiu de uma média de US$ 30 bilhões há cinco anos para US$ 5 bilhões.

José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do banco Fator, acredita que as autrocráticas Rússia e China reforçarão laços daqui para frente, com os chineses comprando boa parte da participação de companhias russas (sobretudo de energia) que tinham como sócias empresas norte-americanas ou europeias.

“É factível termos no futuro duas grandes áreas diferenciadas no mundo, com uma predominância maior do yuan no Oriente e o dólar no Ocidente”, afirma Gonçalves.

Para José Julio Senna, economista e ex-diretor do Banco Central, a pandemia e as sanções à Rússia reforçam a tendência de desglobalização e formação de parcerias regionais e políticas que já vinha se desenhando.

“Entre 1980 e 2008, enquanto o PIB global crescia 3,6% ao ano, em média, o comércio internacional avançava 6%. De 2011 a 2019, o PIB cresce 3,6%; e o comércio, 3,7%”, diz.

Senna afirma que o anúncio recente de programas bilionários de incentivo a setores industriais pelos governos de EUA e Japão é sintoma da tentativa de diminuir a dependência externa em cenário de perda de força da globalização.

“De outro lado, países com regimes semelhantes tendem a se abraçar. Até porque as autocracias não querem por perto influência cultural e exemplos econômicos bem-sucedidos de países liberais e democráticos”, diz Senna.

Para o economista do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, Armando Castelar, a guerra na Ucrânia e as sanções ocidentais em escala sem precedentes devem acelerar mudanças que já aconteciam na ordem econômica global.

“Haverá busca crescente por meios de pagamento internacionais alternativos e pelos países em se tornar autossuficientes em mais áreas, enfraquecendo as cadeias globais. Os chineses, por exemplo, já vêm investindo loucamente em tecnologia, pois a ênfase em autonomia nessa área vai escalar”, afirma.

Fernando Canzian / Folha de São Paulo, 10/04/2022

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